O objetivo deste ensaio é promover elaborações iniciais sobre a desconexão entre as vanguardas políticas no Brasil e suas bases sociais, tendo como objeto de estudo o “programa”, parte fundamental de qualquer instrumento político. Desvelando a natureza, características e importância de tal objeto para a superação dessa desconexão.
Etimologia e significado político
Programa é um termo polissêmico, advém do grego πρόγραμμα (pró-gra-mma), significando “ordem, inscrição, sequência”. Na política, o termo se identifica com o documento que expõe resumidamente os objetivos de um partido, chapa ou candidato. A arte política tem como campo de atuação o poder. Um programa verdadeiramente político é, portanto, contingenciado pelo poder, o tem como fio condutor.
A organização do poder na estrutura do Estado, pressupõe relações relativamente estáveis entre grupos dominantes e subordinados. Havendo assim, uma acomodação política que, como bem demonstrou Maquiavel (e desenvolveu Gramsci), é resultado do consenso e da violência, o que varia enormemente entre um período histórico a outro e de uma classe para outra. Ou seja, não é do interesse da classe dominante, nem das classes subordinadas, um enlace de perpétua guerra (violência), eis então a paz (consenso), baseada na presente correlação de forças (Gramsci) e resultado da incapacidade de alguma das partes em conduzir a guerra (Von Clausewitz). O “centauro maquiaveliano” seria assim, em diferentes proporções de violência e consenso, o pilar fundamental do Estado.
Dessa forma, associando tais conceitos maquiavelianos com o materialismo histórico marxista, Gramsci perceberá que, onde uma classe domina a outra através do instrumento Estado, o limite para qualquer transformação é muito bem delimitado pela função social desse mesmo Estado: a dominação de uma classe por outra. Teoricamente, qualquer mudança que ocorra e não altere essa premissa, é possível dentro do equilíbrio político que gerou e mantém o Estado. É possível, inclusive, que a classe dominante se desfaça de parte de seus interesses corporativos em nome da manutenção da ordem criada e mantida por ela, ou seja, há uma submissão dos seus interesses econômicos imediatos, ou restritos a certas frações da classe dominante, por seus interesses políticos gerais. No entanto, qualquer mudança que coloque em perigo o controle da classe dominante sobre a classe dominada, ou seja, que escape, ou ameace escapar a função essencial do Estado, é jogada à margem do processo político institucional e, historicamente, caso possua a mínima ressonância entre as classes subalternas, é esmagada através das forças repressivas do Estado (violência) e desacreditada através dos instrumentos ideológicos (consenso).
O Brasil
Localizando esse debate em nosso país, é preciso destacar que as diferentes classes dominadas e, especialmente o proletariado, possuem interesses históricos que extrapolam a capacidade de acomodação do atual Estado burguês brasileiro. No caso do proletariado, extrapola a capacidade de acomodação do próprio modo de produção capitalista. Nesse sentido, as forças sociais — excrescências de classes, ou frações de classes — possuem, naturalmente, tendências mais, ou menos revolucionárias; mais, ou menos reformistas; mais alinhadas ao progresso das relações produtivas, ou ao retrocesso para relações produtivas anteriores a depender da classe, ou fração de classe que essas forças sociais se originam.
O proletariado, que conforma a dualidade fundamental do capitalismo junto à burguesia, possui natureza revolucionária, pois é seu interesse histórico fundamental a destruição das relações capitalistas de produção e da sua expressão político-jurídica: o Estado burguês em seus mais diversos formatos.
Naturalmente, como aponta Marx e, mais minuciosamente, Gramsci, torna-se necessário um processo histórico de maturação para que uma classe possa desenvolver consciência de si e para si. Ou seja, que possa desenvolver consciência de quem é, da posição que ocupa na cadeia produtiva (consciência de si); para posteriormente voltar essa consciência para para si mesma, para seus próprios interesses históricos (consciência para si).
O primeiro grau e mais elementar é o econômico-corporativo: um comerciante sente o “dever” de ser solidário com outro comerciante; o fabricante com outro fabricante etc. […] Um segundo momento é aquele em que se atinge a consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, ainda que no campo meramente econômico. […] Um terceiro momento é aquele em que se atinge a consciência de que os próprios interesses corporativos, no seu desenvolvimento presente e futuro, superam a cerca corporativa de grupo meramente econômico e podem e devem se tornar interesses de outros grupos subordinados. Essa é a fase mais francamente política, que assinala a nítida passagem da estrutura para a esfera das superestruturas complexas. É a fase em que as ideologias geradas precedentemente se tornam “partido”, se confrontam e entram em luta até que uma delas, ou ao menos uma única combinação delas, tende a prevalecer, além da unidade dos fins econômicos e políticos, a unidade intelectual e moral, colocando todas as questões em torno das quais ferve a luta não mais no plano corporativo, mas em um plano ‘universal’, criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados. (SADER, 2005, P. 44 e 45)
Nesse sentido, não é de se estranhar que mesmo possuindo uma tendência natural a revolução, o proletariado brasileiro se veja atrelado a concepções e partidos reformistas que colocam apenas a melhoria das condições de vida como horizonte estratégico, sem conceber uma mudança de qualidade, enxergam a realidade através da visão de mundo burguesa, com uma falsa consciência. Ou seja, esses grupos ainda estariam no “segundo momento” descrito por Gramsci, onde ainda não se desenvolveu “a consciência de que os próprios interesses corporativos, no seu desenvolvimento presente e futuro, superam a cerca corporativa de grupo meramente econômico e podem e devem se tornar interesses de outros grupos subordinados”.
Programa, estratégia e instrumento político.
O programa de um instrumento político é um elemento fundamental para sua organização, trata-se da cristalização da estratégia em objetivos estratégicos* distintos, derivados dos interesses históricos** das classes e frações de classe que o instrumento político agrega (ou se propõe a agregar). Funcionando como pontos cardeais no mapa político. Quando tratamos de um programa revolucionário estamos lidando com a cristalização em programa de uma estratégia revolucionária, fruto de interesses históricos, por sua vez, também revolucionários. Nesse sentido, o partido, para ser reformista, deve possuir uma estratégia reformista, ou seja, a estratégia de um instrumento político é condição ontológica para sua classificação. Como é natural a qualquer instrumento, a sua função revela sua natureza, consequentemente o programa que surgirá dessa estratégia será limitado a (no máximo) administração do Estado, ou seja, o limite do objetivo estratégico final desse partido será o governo. Já o partido revolucionário possui, como condição ontológica, uma estratégia revolucionária, ou seja, que por sua própria natureza revolucionária põe a questão do poder, logo, a questão do Estado em seu centro. Sobre o programa do partido social democrata russo, Lenin discorre:
Quais são, pois, as questões principais que surgem ao aplicar à Rússia o programa comum para todos os social-democratas? Já dissemos que a essência desse programa consiste na organização da luta de classe do proletariado e na direção dessa luta, cujo objetivo final é a conquista do poder político pelo proletariado e a estruturação da sociedade socialista. A luta de classe do proletariado compõe-se da luta econômica (contra capitalistas isolados ou contra grupos isolados de capitalistas pela melhoria da situação dos operários) e da luta política (contra o governo, pela ampliação dos direitos do povo, isto é, pela democracia, e pela ampliação do poder político do proletariado). (LENIN, 1961, p. 35).
Dessa forma, o programa do partido do proletariado consegue acoplar os interesses históricos das classes e frações de classe subalternas em suas dimensões políticas e econômicas, cristalizados em objetivos estratégicos concretos. Submetendo interesses puramente corporativos do proletariado à conquista do poder de Estado e o socialismo, “a essência desse programa consiste na organização da luta de classe do proletariado e na direção dessa luta, cujo objetivo final é a conquista do poder político pelo proletariado e a estruturação da sociedade socialista”. Sendo assim, o programa cumpre uma dupla função; se por um lado serve como um guia prático para a ação política, delimitando os pontos cardeais da política e nos permitindo entender quais são os objetivos estratégicos que perseguimos; por outro lado, ao expor os interesses históricos das classes e frações de classe que pretende organizar, atrai esses setores para suas fileiras e revela/delimita o conteúdo social do partido.
Se entendemos que o programa é mais que um mero documento, é impossível restabelecer o vínculo com as massas de maneira abstrata. Esse reencontro entre a vanguarda e suas formações sociais originárias só se torna efetivo caso a vanguarda esteja alinhada aos interesses históricos dessas formações sociais, sintetizando-os em uma estratégia e cristalizando essa estratégia em um programa claro, que permita balizar a política real e atrair os amplos contingentes dessas frações sociais. Ou seja, o programa só se expressa para além de sua forma documental, quando serve de ponte entre as classes sociais e suas vanguardas. Só a partir dessa compreensão o debate sobre a “retomada da conexão entre a vanguarda e as bases” deixa de ter um caráter abstrato, puramente tautológico, passando a concretude da luta política.
*Os objetivos que interagem diretamente com a condução da guerra, que lhe são essenciais e a ela estão diretamente ligados.
**Interesses que emergem do âmago das frações sociais e correspondem a contradições históricas da organização política e econômica de uma sociedade.